De volta ao primordial - The mists of Avalon



         Minha primeira vez com essa obra fantástica foi aos onze anos de vida. Li os quatro livros de uma vez só e lembro que chorei copiosamente em algumas passagens, mais especificamente na cena do assassinato da Viviane. Depois de ter feito boas explorações pelo território darkovano, retornei ao princípio relendo o livro agora em sua edição original que tráz os quatros livros agrupados em um só. É o ponto alto da obra da Marion porque merece ser. Um dos livros mais bonitos de todos os tempos, tem coerência e beleza em sua narrativa. Baseado nas lendas Arturianas, que, conforme descobri em uma rápida pesquisa wikipedeana - foram escritas por poetas e escritores do século XII - as Brumas de Ávalon narram a história da corte de Camelot sob o ponto de vista das mulheres que também construíram aquele reino: Igraine, mãe de Arthur, Morgaine, sua irmã, Gwenhyfar, esposa do rei, Viviane, tia do rei e Senhora do Lago e Morgause, tia do rei.

          Eu costumava classificar os livros da Marion Zimmer Bradley como ficção científica feminista, mas outro dia encontrei um texto dela na introdução de uma antologia darkovana onde ela dizia que não gostava de ser classificada como feminista. Bem, antes de continuar comentando As Brumas vou tentar dissertar um pouco sobre isso. O trabalho da Marion pode ser lido por feministas e até utilizado pra gerar algumas problematizações - como a objetificação das mulheres por exemplo - aos onze anos de idade eu não tinha a percepção e vivência que tenho agora. Quando criança detestava a Gwenhyfar, só entendi que ela tinha feito o Rei Arthur trair o juramento que fizera a Avalon, à Deusa e aos ritos pagãos... mas dessa vez compreendi que a Rainha era tão vítima quanto a Morgaine: perdeu a mãe quando era criança, foi criada em um convento onde freiras e padres passavam horas a fio a doutrinando em uma doutrina cristã que lhe inculcava medos e culpas terríveis. Quando chega a idade adulta, o pai dela a dá para se casar com o Grande Rei, juntamente com um lote dos melhores cavalos da Britânia. Quando se encontram pela primeira vez, Arthur primeiramente demonstra interesse pelos cavalos e depois é que vai cumprimentar a futura esposa. Na ocasião ela até pensa algo como Sou como um objeto, vim no lote junto com os cavalos que devem ter mais valor do que eu. Já desde a Idade Média as mulheres eram reduzidas a sua função biológica de reproduzir (e o fato de ser estéreo é um dos flagelos da Rainha que a leva a atitudes egoístas) e consideradas como objetos de prazer, ou de negociação entre os homens. Ao construir uma obra épica sob o ponto de vista de mulheres (fictícias mas bem realistas), é claro que a escritora tocaria em temas caros ao movimento feminista. No entanto, talvez justamente por ter sido a primeira escritora de ficção científica de peso que teve coragem de trazer as mulheres para um primeiro plano na ação, criando protagonistas com força e poder próprios e não como secundárias que seriam conquistadas por algum mocinho, a Marion não queria na época que seu trabalho fosse reduzido a um posicionamento político. Que fosse considerada como uma expressão de um movimento que já na época queria impor regras à sua produção, como por exemplo não gostar que as personagens tivessem pares românticos. Ora, se a Marion já subvertia esse papel de fraca romantizada típico das personagens literárias antes dela, ela podia fazer o que bem entendesse. Pois é caryos e caryas, por mais que no final das contas seja um trabalho feminista, nossa querida escritora não gostava de se rotular assim. Assim como ela não gostava que dissessem que a obra tinha sido canalizada, que eram mensagens de espíritos ou coisas assim. Ela dizia - Por que eu não poderia ter escrito tudo?
           Gosto de comparar a obra da Marion com o conceito de rizoma do filósofo francês Gilles Deleuze, por sua obra ser inteira conectada e ao mesmo tempo cada livro é singular.  Um rizoma é um conjunto de conexões sem começo nem fim, que pode ser desmontado em qualquer ponto, com unidades autônomas e conectadas. Inicialmente esse era um blog sobre Darkover, uma das origens de Darkover é Avalon. Dessa terceira vez que li, encontrei algumas conexões que antes haviam me passado despercebidas. Todos os livros que se desdobraram a partir desse, tem um germe aqui. Em certo momento Igraine se lembra de uma vida passada em que ela era atlante. (Fazendo uma das possíveis conexões com A queda de Atlântida e com o posterior Os ancestrais de Avalon). Quando Morgaine está mais velha, quando se arrepende por ter deixado Avalon e depois não conseguia voltar ela se lembra de uma lenda que alguém havia lhe contado sobre a sacerdotisa Eilan que havia sido expulsa da ilha (Eilan é a protagonista de A casa da floresta e A sacerdotisa de Avalon). Em algum momento Lancelote se recorda da lenda da Rainha Boudica (que será contada em Os corvos de Avalon). Lancelote e os companheiros da Távola também falavam bastante sobre Páris e Helena (narrativa que será contada pela Marion em O incêndio de Tróia - embora nesse livro não apareça conexão direta com as almas reencarnadas dos personagens atlantes). E por fim a história deixa várias conexões em aberto, depois que Lancelote e Arthur morrem, Morgana meio que se recorda que aquelas almas se reencontrariam por várias e várias vidas (e é que iremos ver nos livros da série Light e Darkover). 
          Uma coisa curiosa é que os nomes originais são ligeiramente diferentes do que estamos acostumados aqui no Brasil. Lancelote é Lancelet, soa estranho a nossos ouvidos mas é isso. Sobre os Cavaleiros da Távola não sei porque mas senti falta do Percival. Acho que misturei vários livros que li, pois na minha cabeça ele que encontrava o Santo Graal, mas foi o Galahad (filho do Lance) e Percival aparece apenas como uma menção da Rainha aos Cavaleiros que tinham desaparecido. Não sei exatamente porque mas estava esperando que ele tivesse participação maior.
 
Fazendo uma releitura sobre meu re-encontro com as personagens:
Morgaine: A Morgaine é minha mãe. Minha mãe sempre teve identificação com essa personagem e não consigo não pensar na Morgaine sem a cara dela. Até fisicamente são parecidas, minha mãe é pequena e minha mãe também é brava quando tem que defender os desígnios da Deusa! Assusta, mas no fundo é boa pessoa. Apesar de muito inteligente e poderosa, a pobre da Morgana sofreu a vida inteira. Ela amava o Lance mas nunca pode levar esse amor a sério, depois o maldito incesto, ela pare um filho maldito, fica presa no país das Fadas, onde o tempo não passa. Perde o filho pra tia malvada, depois vira dama de companhia da Rainha cristã e frígida, tem um lance com Kevin, o bardo que também traí Avalon e consequentemente a ela, é casada num golpe do destino com um velho decrépito, se apaixona por seu filho bonitão, mas este é assassinado. E por fim ela ainda fica velha vendo todos que amava morrendo. É a vida não foi fácil pra nossa heroína, mas ela nos inspira com sua força, magia e sabedoria.

Gwenhyfar: Dessa vez eu amei a Rainha. Amei o modo como a história é escrita, levando em consideração os infortúnios de uma Idade das Trevas. Certos medos dela podem parecer muito bobos a nossos olhos, mas imagina como era viver no século XII? Gwenhyfar é uma vítima. Do pai, dos padres, de sua infertilidade, da cultura em que vivia e do papel que representava, e até do amor que não podia viver. Ela tinha o poder da Visão também, ela não era uma tola qualquer, apesar de se fazer como uma. Ela entendia as coisas rápido, conseguia ler as pessoas a seu redor, mas as fatalidades que acontecem a ela desencadeiam um medo e um dogma tão profundamente enraízado que ela não era capaz de entender os povos antigos. Na cabeça dela, ela e todo aquele povo iria realmente queimar eternamente na chama do inferno por seus supostos pecados. E a medida que envelhecia, que continuava apaixonada pelo Lancelot e sem conseguir dar um herdeiro ao Rei, sua amargura também crescia e sua certeza de que era punida por seus pecados também. No fim ela tem um momento de iluminação com a Deusa e é muito bacana, ela merecia. Ela se liberta da culpa, do dogma e entende que é perfeita como foi criada. É uma pena que nem todas as Gwenhyfars da vida real possam ter essa iluminação, muitas mulheres morrem sendo vítimas de suas próprias condições de vida. 

Viviane: Viviane é polêmica. Não sei se jamais virei a entender as motivações dela. Ela caga na cabeça da Morgana em nome da Deusa, mas no fim... e daí? Mordred é assassinado e Avalon é esquecida do mesmo jeito. Eu sei que ela é uma das reencarnações de Adsharta mas o fato dela ter estragado a vida da Morgaine não fez muito sentido no final de tudo. Angelica Houston é simplesmente intragável e inaceitável para esse papel, o que talvez seja mais um fator que aumenta minha antipatia pela personagem. 

Igraine - Gosto muito dela. Ela me transmite uma coisa de serenidade. Do desastre que foi o filme As brumas de Avalon, acho que salva a atriz que escolheram para o papel. Na minha cabeça a Igraine é exatamente daquele jeito. Mãe do grande Rei, ela parece ter se cansado da magia depois que concebe Arthur. Era totalmente apaixonada e devota ao Uther Pendragon a ponto de esquecer um pouco da filha Morgana quando esta era adolescente. Depois da morte do marido, se converte ao cristianismo e termina seus dias em um convento. Gosto da cena em que Gwenhyfar vai acompanhá-la no leito de morte, isso me mostrou um lado mais humano da Rainha, menos fanático e medroso. 

Morgause - Caralho, a bicha é má! Eu tinha me esquecido dos detalhes, achava que ela só era meio invejosa, mas não essa foi bem cruel. A Morgause tem uma coisa muito interessante que é a liberdade sexual que ela conseguia viver em uma época em que isso praticamente não existia. (E pode parecer muito ficcional isso mas sempre podemos nos lembrar da Rainha Cleopatra como um referencial histórico). O rei Lot, marido dela, vivia cheio de amantes, e ela não ficava pra trás. Deixava ele se divertir com a mulherada enquanto ela paria e amamentava filhos, mas ela também dava uns pegas com soldados e serventes. Tudo na moita, claro, só depois que Lot morreu que ela assumiu os amantes, mas eles jamais a superavam no poder, o reino era dela. Morgause é tomada pela sede de poder, primeiro ela cogita assassinar o Gwydion-Mordred quando é um bebê, mas quando descobre que ele é filho de Arthur resolve que é mais lucrativo criá-lo para tê-lo como uma futura arma. Ela vai ficando mais e mais ambiciosa, a ponto de no fim do livro já está cortando a garganta dos serventes pra jogar o sangue no fogo e fazer magias negras. Quando o Gareth morre, naquele barraco que o Mordred armou pra flagrar Gwenhyfar e Lancelote dormindo juntos, Morgause nem lamentou a morte do filho caçula, só pensava que seu filho adotivo seria o próximo Grande Rei. Quando Mordred assassina Niniane, é ela também que se livra do corpo e faz a egípcia. Medo, ainda bem que ela ficou velha e morreu. 


E por fim, nessa aventura de revisita às brumas, resolvi assistir ao filme (pra passar raiva e dar umas risadas.). É uma produção bem vergonhosa (com alguns pontos que achei bons até - a Morgana criança é uma graça, o Merlin acho bacana, acho que a atriz que faz Gwenhyfar até que combina e a Igraine também. E acho que só). Uma coisa absolutamente piegas desse filme é a trilha sonora de Enya e Lorena McKennedy... parece muito que é uma peça feita pela galera mística pós-moderna de Alto Paraíso. Nada a ver, ficou artificial demais... essas músicas fazem referência aos celtas, mas são contemporâneas!   Fiz uma lista das coisas que o filme suprimiu. E ainda tem muitas outras incoerências que não listei... Uma pena, um livro que merecia uma produção cinematográfica como Lord of the Rings, com dois ou tres filmes pra conseguir contar a história direito...


1) Morgana não vai ao pais das fadas, 
2) não existe o castelo de Caerleon 
3) Guinevere era criança quando vai parar em Avalon e não adulta como no filme, e Morgana leva ela de volta a Glastonbury e não fecha as brumas na cara dela 
4) suprimiram os irmãos do Lance Balin e Balan, 
5) só aparece o Gawaine, um dos quatro filhos da Morgause. Gareth e seus outros irmãos não existem e muito menos é mostrado o conflito do Gareth em querer ser reconhecido por si mesmo, independente de parentesco,
6) não existe Kevin o Bardo, nem Niniane, última filha de Taliesin..
7) cortam a cena onde o Lancelote pega a Elaine achando que é a Guinevere (prima dela e o filme não mostra isso - aliás uma blasfêmia essa peça provavelmente foi dirigida e produzida por homens e conseguem colocar as mulheres como secundárias em um trabalho universalmente reconhecido por contar um lenda sob a ótica das mulheres...), 
8) cortam as cenas da juventude da Guinevere, não aparece o pai dela (parece que Leodegranz é o nome da terra dela ou sobrenome), não aparece ela sendo levada com os cavalos do pai como um dote para o rei - objetificação da mulher - 
9) Suprimiram os nomes originais de Arthur e Lancelet (Gwydion e Galahad), 
10) Angélica Houston como Viviane é simplesmente intragável, 
11) Não sei de onde inventaram que aparecia uma pomba branca quando Igraine usava a Visão. 
12) As cenas com Excalibur são totalmente ridículas com brilhinho feito no movie maker, e não aparece a bainha encantada tecida pela Morgana; 
13) Morgana nunca pega em uma harpa; 
14) Suprimiram a cena em que Guinevere vai ao convento acompanhar Igraine enquanto ela morre; 15) Suprimiram a cena em que ela é sequestrada e estuprada por um auto-declarado meio-irmão - que é um fator que aumenta a paranoia dela em ser boa Cristã, mas no filme fica oco e sem sentido... 
16) Mordred já surge se chamando Mordred mas esse é o nome saxão dele, ele se chama Gwydion como o rei. 
17) Morgause nunca deixou ele pra morrer na neve, só pensou nisso... 
18) Uriens aparece como um João Bobo no meio da história, sendo que ele já aparecia na corte desde os tempos de Ambrósio... 
19) Não aparece que Gwydion/Mordred é druida e passou um tempo em Avalon depois de adulto.
 20) Não aparecem direitos os filhos do Lancelote - Galahad, Nimue, Guinevere II, muito menos que Nimue havia sido prometida de ser adotada pela Morgana, por ela ter arrumado o casamento.
21) O prisioneiro da árvore parece ter sido totalmente suprimido. 
22) Suprimiram Cai o irmão adotivo de Arthur;

Comentários

  1. Uma obra prima memorável como esse livro sem dúvida merecia mais respeito ao ser retratado no cinema. A história ficou muito mastigada, resumida enfim quem não assistiu não perdeu nada, é melhor ler os livros. A propósito que bom que voltou a escrever no blog estava com saudades de suas postagens. Amo Marion, minha escritora preferida também!

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